24/06/2013

POR UMA FRATERNIDADE SOLIDÁRIA

OBADIAS, POR UMA FRATERNIDADE SOLIDÁRIA.
Artigo apresentado na matéria de História da Literatura Bíblica (pós graduação em Teologia Bíblica e Sistemática Pastoral do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil)

INTRODUÇÃO

O texto escolhido para o presente artigo é o Livro do Profeta Obadias. Na percepção do autor este texto, muito pouco explorado pelas comunidades eclesiásticas, é embebido de muita história, profundo em suas lições apesar de tão pouco presente nos púlpitos dos ajuntamentos cristãos.
O texto basicamente trata de uma profecia contra Edom, mas sua abrangência não se restringe somente a este povo, pois no verso 15 o dia do Senhor vem para todas as nações. Logo, qual é a mensagem de Obadias para nós hoje?
Outras questões também estão presentes em Obadias tais como; Qual é, segundo o autor, a origem das desgraças? Qual é o escândalo e a denúncia do profeta? Qual é a expectativa que o escritor tem de uma justiça divina diante das más relações entre os povos?

UM BREVE HISTÓRICO DA RELAÇÃO ENTRE ISRAEL E EDOM

Antes de entrarmos no livro de Obadias se faz necessário rememorar as origens das discórdias entre israelitas/judaítas e edomitas. Afirma SCHÖKEL (2002, p. 2224) que “segundo a tradição, a relação entre Israel e Edom remonta os irmãos gêmeos Israel e Esaú (Gn 25-27), antecessores de ambos os povos”, filhos de Isaque, filho de Abraão. Segundo Gênesis 25,23 viveram os povos que descenderam de Esaú (Edom[1]) e Jacó (Israel[2] e Judá), sendo o primeiro por vezes posto em posição submissa e por vezes rebelde em relação ao segundo. São vários os desentendimentos e embates entre os povos:
1)     Nascem os filhos gêmeos de Isaque e Rebeca, onde há a promessa que o mais novo, Jacó seria maior e subjugaria o mais velho, Esaú (Gn 25,23);
2)     Esaú vende o direito de sua primogenitura chantageado por Jacó por um prato de comida após voltar de um dia de trabalho;
3)     A despeito do desejo de Isaque, mas em direção ao que havia sido prometido no nascimento dos gêmeos, Jacó com o auxílio de sua mãe Rebeca rouba a bênção que seria dada da Esaú, o que incita o ódio deste pelo seu irmão;
4)     Anos mais tarde há a reconciliação entre os dois, contudo cada um segue seu caminho, Jacó desce ao Egito e Esaú permanece na....;
5)     Na entrada do povo de Israel na terra, vindo do Egito, este pede passagem pelo território dos edomitas, pedido que foi negado com veemência e certa ameaça (Nm 20,18.20);
6)     Sob o reinada de Saul Israel faz guerra com os povos a terra, inclusive os edomitas e sai vitorioso (1 Sm 14,47);
7)     Sob o governo de Davi, os israelitas conquistam Edom que passa a ser território anexado à Israel (2 Sm 8,13-14);
8)     Edom se rebelou contra Israel quando reinava Salomão (1Rs 11,14.25)
9)     Edom conseguiu independência quando Judá estava sendo governada por Jorão (2Rs 8,20-22);
Se não bastasse todo esse histórico de atritos entre os dois povos, a relação entre as duas nações irmãs se estremeceu para sempre quando os Edomitas se aliaram a Babilônia por ocasião da queda de Jerusalém;
1)     Israel se revolta contra a Babilônia, que reage de forma branda levando Joaquim para o exílio, mas deixando a administração com Sedecias (2Rs 24).
2)     Uma nova revolta acontece e desta vez a Babilônia não age benevolentemente e destrói completamente a Jerusalém e leva o povo ao cativeiro (2Rs 25,8-10);
Como se vê no relato bíblico há uma forte presença e participação dos edomitas a época da queda de Jerusalém assim nos conta Obadias nos versos 11 ao 14, mas em outros textos esse fato é lembrado como em Amós 1,11 “Assim diz Javé: Por três crimes de Edom e pelo quarto, eu não vou perdoar: porque perseguiram seus irmãos com a espada, sem ouvir a voz do sangue fraterno, e porque acenderam a raiva para sempre, guardando ódio eterno.[3]” No registro dos Salmos 137,7-9 percebe-se todo o rancor que ficou da relação entre as nações:

“Javé, pede contas aos filhos de Edom no dia de Jerusalém, quando diziam: “Arrasem a cidade”! “Arrasem até os alicerces”! Ó devastadora capital de Babilônia, feliz quem lhe devolver o mal que fez para nós! Feliz quem agarrar e esmagar seus nenês contra o rochedo!”

O ódio demonstrado aqui da parte de um israelita em direção a um edomita encontra reciprocidade como afirma Ezequiel sobre Edom no capítulo 35 verso 5: “Você cultivou ódio eterno e entregou os israelitas ao fio da espada, no tempo que estavam na desgraça, no dia do castigo final.” De certo os edomitas tinham também seus motivos legítimos de ódio para com seus irmãos israelitas.
Não há muitas informações sobre o escritor do livro, segundo WlLSON (2006, p. 334) “se os profetas escritores pré-exílicos de Judá podem ser discernidos somente de forma vaga nos textos, os exílicos e pós-exílicos são quase que invisíveis.” Mas acredita-se que Obadias não está entre os deportados e é um dos que ficam na terra após a destruição de Jerusalém, “muitos biblistas afirmam que Abdias foi um poeta cultual ligado ao Templo de Jerusalém antes da sua destruição” (PAZDAM apud BERGANT & KARRIS, 2010, p. 117). Sendo assim, ele foi uma testemunha ocular do que ocorreu e um que sofre na pele as conseqüências da derrota. Segundo ROSSI (2006, p. 11), o profeta “não teoriza e muito menos faz abstrações acerca da situação dolorosa que vive seu povo. Não, suas palavras estão encravadas na paisagem de dor e destruição que ele próprio com seus irmãos viveram”.

AS ORIGENS DO MAL

            No texto de Obadias a profecia sobre Edom é drástica, não haverá escapatória e a graça de Deus não os alcançará, mas qual é o motivo interno que encaminhou Edom para este cenário de desgraça?
            O primeiro motivo nos faz lembrar Provérbios 16,18 “A soberba precede a ruína, e a altivez do espírito precede a queda.” Isto está muito claro no texto de Obadias. Edom, devido a sua posição geográfica, demonstrava uma atitude arrogante (verso 3) como se nada ou ninguém fosse capaz de alcança-lo. Como relara ROSSI (2006, p. 16) Edom “está incrustado em zona montanhosa e escarpada, e é ainda cortado por vales estreitos e profundos... é território de difícil manobra militar e suas fortalezas são, praticamente, inacessíveis”.
            Esse sentimento levando a ruína para quem o cultiva já era do conhecimento do profeta. Quando os jebuseus estavam ocupando Jerusalém fizeram pouco caso do exército de Davi, garantidos pela localização geográfica da cidade como vemos na narrativa de 2 Samuel 5,6-7:

Davi marchou com os seus homens sobre Jerusalém, contra os jebuseus que habitavam o território. Os jebuseus disseram a Davi: “Não entre aqui, porque bastam os cegos e os aleijados para o repelir”. Era a maneira de dizer que davi não entraria na cidade. Mas Davi conquistou a fortaleza de Sião, que ficou sendo a cidade de Davi.

O destino de Edom não seria diferente dos jebuseus e sua arrogância seria o que os levaria ser “a menor das nações, dentre todas a mais desprezada” (verso 2).
O segundo motivo que o profeta aponta como origem a desgraça de Edom é a violência, como relata os versos 8 até o 10:

E não é que nesse dia – oráculo de Javé – eu vou acabar com os sábios de Edom, com a inteligência da montanha de Esaú? Seus heróis, ó Tema, se acorvadarão, de modo que todo homem será eliminado da montanha de Esaú. Por causa do morticínio e da violência praticada contra seus irmão Jacó, a vergonha cobrirá você, e você será eliminado para sempre. (grifo do autor)

Como evidencia ROSSI (2006, p. 21) a “violência e o morticínio são as causas das desgraças que se abatem sobre Edom. A vergonha é a consciência tanto da culpa como da derrota merecida”. Podemos constatar, na leitura deste trecho de Obadias, a inteligência (ou sabedoria) e a coragem militar dos edomitas não foi utilizada para o bem, mas para a promoção do mal. A ajuda dos filhos de Esaú certamente foi definitiva como ressalta ROSSI (2006, p. 24) “certamente os babilônios não estavam bem informados sobre os pontos fracos de Judá. Nesse sentido, os edomitas poderiam prestar grande serviço estratégico à Babilônia”, nisto se legitima a grande cumplicidade de Edom na queda de Judá e sua sentença dada por Javé. 

O ESCÂNDALO E A DENÚNCIA DO PROFETA

            Solidariedade, esta é a palavra chave daquilo que se esperava de Edom. Apesar de todo o histórico de desentendimentos desde os patriarcas dos dois povos, é claro que a expectativa do escritor era de uma postura mais nobre dos irmãos edomitas.
Mas ao invés de solidariedade o sentimento que norteou as ações dos edomitas foi a vingança, isto é o que escandaliza do profeta como aponta ROSSI (2006, p. 15): “a violência maior não está nos atos assassinos dos exércitos da Babilônia, mas sim no povo irmão que age como inimigo”. De fato é razoável que a babilônia respondesse com toda força ao segundo levante israelita, mas a falta de solidariedade da nação irmã, a sua incapacidade de associação e ausência de qualquer sentimento fraterno constituiu num fato gerador de grande mágoa denunciada por Obadias.
Já lemos que não é só Obadias que se escandaliza com essa postura dos edomitas, mas também Amós (1,11), Ezequiel (25,12-14;35,5), se  escandalizam e denunciam o sentimento vingativo de Edom surdo ao apelo do sangue fraterno. “Nessa situação, em que a dor se faz mais forte do que nunca, é que percebemos o profeta Abdias abrindo os olhos, a fim de notarmos algo de extrema importância: a violência vem acompanhada de falta de solidariedade” (ROSSI, 2006, p. 15). PAZDAM apud BERGANT & KARRIS (2010, p. 117) nos trás a informação de que “há até uma alegação de que os edomitas incendiaram o Templo (cf. 3Edr 4,35).”

EXPECTATIVA DE UMA JUSTIÇA DIVINA

Toda essa triste história de desentendimentos entre irmãos que constatamos quando lemos a história desses dois povos desencadeia numa espiral de ódio e vingança. E como afirma ROSSI (2006, p.26) “vingança atrapalha a vida das pessoas e as destrói por dentro”. Percebe-se tanto do lado de edomitas como por parte dos judaítas uma incapacidade de esquecer, superar ou perdoar erros antigos gerando esse círculo vicioso de ódio e violência onde um se alegra com a desgraça de seu irmão.
Se observarmos há uma desproporcionalidade na reivindicação de Obadias no verso 15 de Edom ser retribuído por Deus tal fez à Judá se recordarmos que quando Davi subjugou Edom matando todos os homens de Edom nada foi feito e ninguém se levantou para defendê-los.
É possível identificar que Javé é fiel ao seu povo escolhido e não muda de lado, tal como Edom fez. Por isso nos versos 17 e 18 é apontado que “a “casa de Jacó”, que representam as tribos do Reino de Judá, e a “casa de José” que representa as tribos do Reino de Israel, serão juntas vencedoras sobre Edom, que deixará de existir” (ROSSI, p. 28). Conforme PAZDAM apud BERGANT & KARRIS (2010, p. 117) verdadeiramente experimentou a aniquilação uma vez que “depois de 450 a.C., o nome Edom desapareceu dos resgistros históricos. Durante o reinado de Herodes Magno (37-4 a.C.), entretanto, o território designado Edom recebeu o nome de Iduméia”.
Não obstante, no verso 16 a justiça divina também se aplica ao povo escolhido de Deus, vamos tomar por base a tradução da Bíblia do Peregrino que assim traduz o texto: “Assim como bebestes em meu monte santo, beberão todas as nações por sua vez, beberão, consumirão e desaparecerão sem deixar rastro.”. Segundo o comentarista da Bíblia do Peregrino, SCHÖKEL (2006, p. 2226), “podemos imaginar que o primeiro “bebestes” refere-se aos judaítas, que já beberam até o fim a taça do castigo. Edom seguirá junto com as outras nações”. Este castigo aos judaítas, assim interpreta o autor deste artigo, ser o castigo legítimo e merecido aos judaítas não só pelo afastamento do povo da vontade de Javé, mas também castigo por ter subjugado tantas vezes de maneira tão dura ao seu irmão Edom.
Assim vemos que Javé se põe fielmente ao lado do seu povo, porém não se permite ser injusto não dando a devida retribuição aos seus filhos pelo mal que causaram uns aos outros.

CONCLUSÃO

            Sem uma aplicação pastoral, para o “chão” da comunidade cristã, toda a interpretação se torna fazia. É inútil qualquer esforço exegético se este não vier acompanhado de uma hermenêutica que dê conta de comunicar a nós hoje. E quando pensamos nisto, vemos que o Livro do Profeta Obadias é de uma riqueza inesgotável para se trazer uma reflexão profunda dos relacionamentos, que não só limitaria aos relacionamentos fraternos, mas a todos os relacionamentos interpessoais para que sejam norteados pela fraternidade, solidariedade em prol da promoção da justiça em detrimento da opressão dos poderosos.
            Outro sentimento que podemos notar no escritor de Edom seria de confiança em Javé, notem que “a descrição da queda de Edom, assim como e restabelecimento de Judá e sua dominação, testemunha a fé no poder do Deus de Israel, capaz de dominar as nações e de proteger seu povo” (MACCHI apud NIHAN, MACCHI & RÖMER, 2010. p.509).
            Seja viva nas nossas mentes e corações essa mensagem por mais fraternidade e solidariedade entre os homens.
  
BIBLIOGRAFIA

BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (Org.). Comentário Bíblico. Vol. 2. 5. ed. Trad. Bárbara Theoto Lambert. São Paulo: Loyola, 2010. 448 p.;
BÍBLIA. Português. Bíblia do Peregrino. 2. ed. Tradução Bíblia do Peregrino. São Paulo: Paulus, 2006. 3055 p.;
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução CNBB. São Paulo: Paulus, 1991. 1631 p. Edição Pastoral;
RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe (Org.). Antigo Testamento história, escritura e teologia. Trad. Gilmar Saint Clair Ribeiro. São Paulo: Loyola, 2010. 847 p.;
ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Como Ler O Livro de Abdias Profeta da Solidariedade. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2006. 29 p.;
WILSON, Robert R. Profecia e Sociedade no Antigo Israel. São Paulo: Targumim/Paulus, 2006. 384 p.




[1] Edom, vermelho nome pelo qual é identificado o povo descente de Esaú talvez pelo fato de ser ruivo (Gn 25,25), ou ainda pela cor do guisado oferecido à ele por Jacó por ocasião da venda de sua primogenitura (Gn 25,30).
[2] Nome de Jacó que foi mudado após o episódio em Peniel (Gn 32,28).
[3] Todos os textos bíblicos deste artigo fora retirados da Bíblia Sagrada Edição Pastoral (Paulus), exceto quando mencionada outra tradução.

Nenhum comentário:

Postar um comentário